quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

INOVAÇÃO NA GESTÃO MUNICIPAL: BASES, LIMITES E POSSIBILIDADES

Schumpeter
1. Introdução:

A esfera municipal tem ganho crescente importância no Brasil nos últimos anos. Por um lado, o retorno à democracia levava à identificação de democracia com descentralização provocando um esvaziamento do Estado central para as esferas sub-nacionais de governo, principalmente a municipal. Por outro lado, a crise que se abate quase de forma generalizada sobre o mundo capitalista nos anos 80, e fortemente sobre o Brasil, faz com que se esgote não só a possibilidade do Estado desenvolvimentista como de qualquer tipo de ação mais abrangente e duradoura do Estado. Assim, as esferas municipal e estadual, mais a primeira até que a segunda, passam a ser depositárias das reais possibilidades de intervenção do Estado no novo quadro que vem se desenhando a partir da década de 80.

Nesta nova situação as esferas sub-nacionais têm que assumir não só tarefas que não estavam acostumadas a desempenhar, não tendo qualquer tradição ou conhecimento acumulado para tal, como também fazem isto em um contexto de crise quase permanente. Este quadro tem levado muitas administrações sub-nacionais, a buscar inovação na gestão de modo a dar conta de suas novas responsabilidades. Este trabalho versa sobre a questão da inovação na gestão pública buscando situar o que se entende por inovação no plano teórico e cotejando este desenvolvimento teórico com uma base empírica. Além do esforço de avançar a compreensão do tema da inovação na gestão pública em termos teóricos, este trabalho também se propõe construir categorias de inovação na gestão pública no Brasil.

O objeto empírico constitui-se de uma "amostra" de 100 (cem) experiências concretas de governo – estadual e municipal – participantes do Programa Gestão Pública e Cidadania, iniciativa da Fundação Getúlio Vargas/Fundação Ford, selecionadas a partir de um total de 297 projetos inscritos. Por participarem de um programa com muita visibilidade e credibilidade e por serem provenientes de várias regiões do País e de diferenciados setores de atuação, acreditamos constituírem um referencial representativo do que ocorre em termos de inovação no Brasil.

2. Inovação na Gestão Pública: Um Referencial Teórico

2.1- Inovação na Concepção Schumpeteriana

Se a característica da inovação na gestão municipal tem sido apontada e explicitada como significativa, como um novo processo, o mesmo não se pode dizer de suas bases teóricas. Aponta-se a existência da inovação, fala-se dela, sobre ela, mas não se teoriza sobre ela. Descrevem-se as experiências inovadoras mas não se desenvolvem as bases teóricas desta categoria. Este trabalho faz um esforço, ainda que preliminar, de situar as bases teóricas do que se entende por inovação.

Nosso referencial teórico básico deve ser olhado com bastante cuidado e reservas. Vamos nos basear em Schumpeter estando conscientes de que este autor teve por referencia a análise do processo de inovação nos sistemas produtivos no capitalismo. Vamos nos valer de Schumpeter tendo no seu trabalho apenas um referencial de um autor que pensou e propôs a inovação. Sabemos das diferenças enormes que existem entre os sistemas econômicos e os sistemas políticos, embora também existam aproximações e interações entre estes. Então vamos procurar em Schumpeter idéias mais abstratas que possam ser trabalhadas na análise da inovação no plano da gestão pública.

Iniciaremos justamente fazendo uma brevíssima síntese destas idéias, síntese esta restrita fundamentalmente à questão da inovação. Schumpeter vê o capitalismo como um "processo evolutivo". A palavra ‘novo’ tem um significado estratégico no pensamento schumpeteriano. Assim é que para ele o impulso do capitalismo "decorre dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria" (Schumpeter, 1984:112). O avanço tecnológico ocorrido ao longo da história da humanidade principalmente nos últimos dois séculos, pós-Revolução Industrial, leva ao que Schumpeter chama de ‘destruição criativa’, que para ele caracteriza e define o capitalismo. A concorrência centra-se na inovação e esta provoca um processo de destruição criativa onde velhas estruturas são substituídas por novas conduzindo a economia a níveis mais elevados de renda e presumivelmente de bem-estar social. É dentro do arcabouço do processo de destruição criativa que "têm de viver todas as empresas capitalistas" (Schumpeter:1984:113). E nós postulamos que também os governos têm de viver dentro deste arcabouço. Ele agrega que "todos os elementos da estratégia de negócios" devem ser vistos "sob o vento perene da destruição criativa", não podendo ser compreendidos "sob a hipótese de que existe eterna calmaria" (Schumpeter, 1984:113). Substituindo ‘estratégia de negócios’ por ‘estratégia de governo’, este não poderia também ser visto sob a hipótese da calmaria. Muito pelo contrário o período atual é justamente caracterizado por turbulências o que justifica mais ainda a existência da destruição criativa.

Schumpeter se torna um crítico ácido da idéia de concorrência enquanto concorrência de preços, desalojando a variável preço de sua posição dominante. Para ele, na realidade capitalista não é esse tipo de concorrência que decide, "mas a concorrência através de novas mercadorias, novas tecnologias, novas fontes de oferta, novos tipos de organização..." (Schumpeter, 1984:114). No nosso paralelo, a concorrência entre governos se daria através de novas fontes de oferta de serviços públicos, de projetos governamentais, de concepções de governo, de formas de intervenção, etc. Mais abaixo, qualificaremos o que entendemos por concorrência entre governos, alertando antecipadamente que ela se diferencia fundamentalmente da concorrência no sistema econômico.

Schumpeter (1984:115) tem ainda uma visão diferente da concorrência em um outro aspecto: "o empresário sente-se em situação competitiva mesmo quando está só em seu campo ou quando, embora não estando sozinho, detém uma posição tal que os peritos do governo não conseguem ver qualquer concorrência efetiva entre ele e quaisquer outras firmas no mesmo campo ou em campos vizinhos (...)". Ele fala de uma "ameaça onipresente" da concorrência mesmo quando esta não existe conforme descrito. Transpondo para o nosso campo, poderíamos dizer que governos mesmo não submetidos a situações competitivas sentir-se-iam compelidos a competição devido a esta ameaça onipresente, entendendo governos não submetidos a situações competitivas aqueles que estão à cavaleiro em suas posições, experimentando altas doses de legitimidade, de reconhecimento da opinião pública, mas que também estariam sob um risco potencial.

Schumpeter (1984:121) argumenta ainda que "existem situações, no processo de destruição criativa, em que muitas firmas sossobram (sic)". Deixando de lado as crises gerais e depressões, "surgem situações específicas em que a rápida mudança do quadro" desorganiza brutalmente uma indústria e Schumpeter admite com segurança que "não tem sentido tentar manter indefinidamente indústrias obsoletas", devendo-se buscar evitar os seus desmoronamentos. O que podemos tirar de luz dessas passagens para nossos argumentos é o seguinte: 1) governos não sucumbem exatamente da mesma forma que setores econômicos, o que, ademais, tem sido uma crítica do pensamento neoliberal (ver Dunleavy & O’Leary, 1987). Governos são socorridos por níveis maiores de governo e/ou pelo Tesouro, ou ainda problemas e soluções são empurrados para gerações futuras mascarando a situação existente; 2) fica muito difícil medir o impacto que uma destruição criativa provocada por um governo causa em outros governos, ou seja, medir, identificar que determinados governos soçobram por conta da destruição criativa à qual eles não foram capazes de resistir ou de interagir.

Schumpeter envereda ainda pela discussão da oportunidade de levar adiante a inovação. Assim, as melhorias são adotadas se o custo do novo método de produção por unidade de produto for menor que o custo básico por unidade de produto do método vigente assim como resultar numa renda futura maior. O autor discute ainda a questão da depreciação dos ativos existentes e como isto influencia a decisão de adotar um novo método de produção. Trazendo essas colocações para nosso campo poderíamos afirmar que os governos também estudam essas questões, estas se tornam relevantes principalmente em épocas de crise, de contenção de recursos.

Finalmente Schumpeter (1984:131) chega à discussão que nos interessa sobremaneira, a questão do monopólio. Para ele, "monopolista significa vendedor único". Assim, poderiam estar nessa situação qualquer pessoa ou empresa que venda um determinado produto em um determinado tempo com exclusividade. Nessas condições a situação de monopólio pode ser extremamente breve. Qualificando melhor a condição de monopolista, para ele são os "vendedores únicos cujos mercados não estão abertos à entrada de produtores potenciais da mesma mercadoria e de produtores efetivos de mercadorias similares (...)". Ele discorda da possibilidade de monopólios por longo prazo e en passant, se refere ao campo dos serviços públicos como um campo de monopólio explícito. Aqui surgem as diferenças fundamentais entre o campo de atuação de Schumpeter – sistema econômico privado – e o direcionamento que pretendemos dar e que, portanto, merece ser melhor qualificado para podermos avançar.

Uma primeira colocação refere-se à condição de monopólio do governo. O próprio Schumpeter refere-se ao monopólio dos serviços públicos, situação aliás que se presente no tempo de Schumpeter (primeiras décadas do atual século) hoje passa a ser desmontada. Weber refere-se ao Estado como o monopólio do uso legítimo da força. Assim, o Estado e o governo possuem, têm em suas mãos determinados monopólios. Mas o governo é um monopólio? Se existe monopólio não existe concorrência, não existe competição? As respostas, são sim para a primeira questão e não para a segunda, por mais paradoxal que possa parecer. Um governo sub-nacional não compete com outros na forma que conhecemos a competição entre empresas produtoras do setor privado. A competição neste caso é diferente e comporta duas formas:

a) existe uma competição entre governos no sentido de ser feita uma comparação entre partidos diferentes, partidos que estão à frente de governo (por exemplo: competição entre administrações de municípios diferentes). Essa comparação tanto é feita pelos eleitores, como pela mídia assim como pelos próprios partidos. Essa comparação, essa competição pode criar uma imagem positiva ou negativa de uma administração;

b) existe uma competição por eleitores, que afinal de contas são os que definem quem vai ocupar o governo. O mercado formado por eleitores é praticamente "inelástico" no sentido da quantidade de eleitores, sofre entrada (novos eleitores que atingem a idade de votar) e saída de eleitores (fundamentalmente pela morte). Uma situação que rompe com esse equilíbrio é aquela em que existem migrações de pessoas (e consequentemente de eleitores) em volume considerável em direção a um determinado município. Mas, via de regra, o número de consumidores do processo eleitoral é estabilizado, ainda mais em condições de crescimento populacional estável. O mercado é "inelástico" também no sentido de que um governo, os partidos no processo eleitoral, não brigam, não disputam eleitores de outros municípios (de outros estados, no caso de eleições estaduais). Assim, o mercado, os consumidores (os eleitores) são previamente conhecidos. E são eles que dizem se o produto é bom ou não, se o partido no governo deve continuar ou ser substituído por um que está na oposição. Uma outra diferença deve ser apontada: enquanto os bens convencionais estão no mercado todo dia (por exemplo a venda de aparelhos de TV), o mercado de votos só acontece a cada quatro anos, embora ele esteja latente o tempo todo.

Em síntese, existe competição, concorrência só que numa forma absolutamente diferente daquela existente para a maioria dos bens e serviços. E quanto ao monopólio? Um governo é um monopólio no sentido de que não existem dois governos. Os consumidores (a população de um determinado município, estado ou nação) não podem, via de regra, optar por um governo ou outro, não pode consumir os produtos de um governo e preterir os de outro. O governo é um monopólio mas também um monopólio com características específicas: é um monopólio com duração marcada, com tempo determinado para existência. Evidentemente estamos afastando as hipóteses de ocorrência de impeachments, golpes, revoluções. Em condições normais o governo é um monopólio com duração marcada, previamente anunciada e conhecida. Ora isto não acontece no mercado privado de bens e serviços. Um determinado partido no poder pode renovar o monopólio no caso de uma vitória na eleição marcada e mesmo o dirigente pode renovar este monopólio no caso de reeleição, mas novamente fica condicionado ao tempo politicamente fixado pela sociedade.

Esta situação coincide com a descrita como poliarquia (Ver Dahl, 1997). Em que pesem alguns pesares (Pinho, 1998), caminhamos no Brasil para uma poliarquia (O’Donnell, 1996), entendida como um mercado eleitoral competitivo. Nessas condições onde entra a inovação? A inovação entra justamente como uma estratégia de diferenciação de governação, que deve se diferenciar de governance e governabilidade, identificando-se com o ato de governar, de exercer o poder, de fazer o governo. Em um mercado eleitoral competitivo a governação fica sujeita à destruição criativa, a recorrência à inovação no sentido de criar vantagens competitivas para o partido no poder assegurar a manutenção do poder e a renovação do seu monopólio. A inovação – a bem sucedida evidentemente – cria a imagem de um governo ativo, sintonizado com as necessidades da população (leia-se eleitorado), moderno, transforma-se em quase um paradigma. Do outro lado, um governo que não adota a inovação passaria a ser visto com reservas, conservador, não forma uma imagem positiva. Apenas para exemplificar podemos tomar o caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre, experiência bem-sucedida que se tornou referência, que tem sido emulada e que, certamente, responde parcialmente pela manutenção do poder por parte do partido no governo.

Como crítico da concepção da concorrência perfeita, Schumpeter defende que "a introdução de novos métodos de produção e novas mercadorias dificilmente é concebível sob concorrência perfeita", o que significa que "o grosso do que chamamos de progresso econômico é incompatível com ela". O autor ainda enfatiza que "na verdade, a concorrência perfeita é e sempre foi temporariamente suspensa sempre que alguma coisa nova está sendo introduzida - automaticamente ou por medidas imaginadas com tal propósito –, mesmo em condições que de outra forma seriam perfeitamente competitivas" (1984:139). Longe de nós qualquer idéia de pensar em concorrência perfeita entre governos. Se o fenômeno já é altamente questionado no explícito sistema econômico, fica completamente impossível caracterizá-lo no sistema governativo. O importante a reter dessas afirmações de Schumpeter refere-se à quebra do equilíbrio. Para ele, o capitalismo deve ser visto como o movimento de inovação que quebra a idéia da concorrência perfeita. Assim também veríamos o sistema político. A introdução de inovações por parte de uma administração pública provoca desequilíbrios no sistema político, forçando outras administrações a adotarem a mesma inovação ou a procurarem outras no sentido de criar uma diferenciação. No regime da concorrência perfeita não haveriam estímulos à inovação, poderíamos dizer que seria o campo da mediocridade, e que, assim, não pode ser vista como "modelo de eficiência" (1984:141).

Na concepção schumpeteriana existem três estágios no processo de mudança: invenção, inovação e difusão. Invenção refere-se "à geração de novas idéias e seu subsequente desenvolvimento a um ponto onde as dificuldades conceituais e práticas de sua implantação já foram superadas". A inovação "ocorre quando o empresário acredita que é lucrativo comercializar a invenção" (Hasenclever, 1991:13). O terceiro estágio refere-se `a difusão que será tratada mais adiante. Acreditamos que com esse corpo teórico desenvolvido por Schumpeter temos um arsenal teórico para olharmos a questão da inovação na gestão pública no Brasil.

2.2- A Inovação na Gestão Pública no Brasil

Entendemos que o processo de inovação desencadeado fundamentalmente pela esfera municipal no Brasil tem três fontes geradoras básicas: 1- A crise que se abate sobre a sociedade brasileira provocando transformações no Estado. 2- Iniciativas de algumas prefeituras ligadas a partidos de esquerda, iniciativas estas motivadas não só por razões ideológicas mas também como respostas à crise acima apontada. Como conseqüência dessas ações, iniciativas de inovação acabam vindo também do centro-esquerda e da direita na gestão pública. 3- Mimetismo na gestão municipal, ou seja, governos não só de esquerda mas mesmo de perfil mais conservador acabam copiando, adotando propostas de governos mais à esquerda, adaptando-as ao seu perfil ideológico.

Passaremos, agora, a tratar cada uma dessas fontes.

1. Conforme assinalamos ao início, a crise do Estado desenvolvimentista associada a aprovação da Constituição de 1988 faz com que "importantes tarefas, antes assumidas pelo poder central, têm de ser incorporadas ao âmbito governamental sub-nacional" (Abrucio & Couto, 1996:40). Estas tarefas acabam configurando um novo "tipo de política de cunho redistributivo e/ou anticíclico para garantir, minimamente, a renda e o emprego dos habitantes destas regiões" (Abrucio & Couto, 1996:41).

Os dois autores citados são enfáticos ao afirmarem que os municípios assumem responsabilidades que eram da União, principalmente no tocante as áreas de educação e saúde, demonstrando que os municípios "têm assumido o papel de welfare" e que, assim, "os municípios, portanto, precisam redesenhar sua atividade estatal" (Abrucio & Couto, 1996:41). Por essas colocações podemos inferir que, se o Estado central retira-se não só da economia mas da atuação social, aproximando-se mais ou menos (a depender do observador) de um ideário neoliberal, cabe aos municípios a provisão social. Em outras palavras, se sobrevive algum Keynesianismo este se dá ao nível municipal.

Esse novo quadro (novas responsabilidades, novas atribuições, novos papéis) e em um contexto de crise tem levado os governos municipais a enfrentarem problemas para os quais não só não estavam preparados como não tinham tradição de atuação. Esta situação tem se configurado, assim, como um desafio mas também como uma oportunidade de criação de novos caminhos para o enfrentamento de problemas sociais onde a inovação surge como uma estratégia concreta.

2. Dentro deste quadro de crise, de aguçamento de problemas das mais variadas ordens, ocorre a redemocratização no Brasil cuja face mais visível são as eleições diretas e livres. Abre-se, assim, a oportunidade, após décadas de autoritarismo, para partidos de esquerda e/ou centro-esquerda chegarem ao poder, ainda que basicamente de governos municipais. E a partir daí configuram-se experiências inovadoras, algumas bem sucedidas, que podem ser interpretadas da seguinte maneira. Em primeiro lugar, as inovações propostas objetivam marcar diferenças ideológicas bem pronunciadas. Os partidos de esquerda no governo objetivam mostrar que houve uma mudança radical, uma inovação, e que esta tem um conteúdo ideológico bem diferenciado dos partidos conservadores. Muitas das inovações explicitam diferenciações em termos de princípios, como é o caso da "inversão de prioridades". Em segundo lugar, essas experiências inovadoras bem sucedidas representariam um passaporte para propósitos mais largos: a obtenção de governos estaduais, e mesmo a Presidência da República. Assim, a inovação assume um caráter fundamental no sentido de criar uma diferenciação com o campo adversário e servir como uma vantagem competitiva tanto para a manutenção do poder (na esfera municipal) como um credenciamento para objetivos maiores.

Não cabe aqui examinar essas inovações encetadas por governos ligados mais à esquerda dado que são bastante conhecidas e têm sido bem cobertas pela literatura. Novamente podemos citar, para ficar num exemplo concreto só, a experiência emblemática do Orçamento Participativo (Ver Moura, 1997), bem como outras deflagradas nas administrações de Santo André, Santos, Porto Alegre, Vitória, entre várias. Cabe observar que a busca de inovações não se deu apenas no campo da esquerda, mas também marcou administrações da centro-esquerda como é o caso de Fortaleza e, no plano estadual, o Ceará. E mesmo administrações da direita também têm enveredado pela busca de inovações no sentido de apresentar uma gestão moderna, como é o caso do governo da Bahia (Ver Pinho, Santana, Cerqueira, 1997). Estaríamos assim frente a um sistema extremamente competitivo no sentido schumpteriano longe de qualquer possibilidade de concorrência perfeita.

3. O mimetismo na gestão pública pode ser referenciado à categoria da difusão considerada por Schumpeter. A adoção da inovação acaba por criar um diferencial para o capitalista gerando um lucro acima do normal, do padrão que caracteriza um determinado setor. Isto faz com que ele desfrute de uma posição superior em relação aos concorrentes pelo menos enquanto estes não adotam a mesma inovação ou qualquer outra que provoque esse lucro extra. Antes de Schumpeter, aliás, o próprio Marx já havia detectado este processo. Em suas palavras: "the capitalist who applies the improved method of production, appropriates to surplus-labour a greater portion of the working-day, than the other capitalists in the same trade". E pondera que "this extra surplus-value vanishes, so soon as the new method of production has become general...". Mais que isso ele vê uma "coercive law of competition" a qual "forces his competitors to adopt the new method" (Marx, 1977:302). A implantação de uma inovação bem sucedida causa então "a emulação de competidores ansiosos em ampliarem os seus próprios lucros, eliminando as vantagens de custos ou de receitas advindas do produto do inovador"(Hasenclever, 1991:15). Diríamos que o objetivo que move a adoção da inovação não é só ampliar os lucros mas eliminar a vantagem competitiva do concorrente sob pena de não adotada a inovação o não-inovador perder espaço e ser expelido do mercado.

Acreditamos que esse desenvolvimento pode ser aplicado a gestão pública. A competição (na forma descrita) que ocorre entre as administrações públicas leva à eliminação de diferenciais competitivos bem como a criação de seus próprios diferenciais. A especificidade da gestão pública faz com que, evidentemente, essa transladação não ocorra diretamente. Se no caso do sistema econômico estamos tratando fundamentalmente de mudanças tecnológicas (relembrando que também haveria novos produtos, novos processos e novas formas organizacionais), no caso da gestão pública trata-se de sistemas sociais. Assim, não é porque uma inovação seja bem sucedida numa determinada área (um município, por exemplo) que ela o será em qualquer outra área. Pode até haver o caso dela simplesmente não se aplicar, não ser pertinente, cabível em outra realidade, não haver interesse em ser adotada mesmo que seja uma inovação e que seja bem-sucedida. Uma questão mais de fundo ainda refere-se à questão ideológica. Determinadas inovações não são simplesmente técnicas mas fundamentalmente carregam um conteúdo político-ideológico e, portanto, não são transportadas pelos concorrentes. Inovações que se chocam contra princípios ideológicos, que firam esses princípios não podem ser adotadas pelos concorrentes, a não ser que o produto seja mascarado de uma forma tal que sua aparência seja a mesma do inovador original mas que a sua essência seja completamente desvirtuada.

Dois aspectos pelo menos devem ainda ser destacados do processo de difusão no pensamento schumpteriano. Em primeiro lugar, a adoção da inovação em um outro espaço não significa simplesmente cópia. A difusão envolve uma agregação de valor. Ao se adotar uma inovação em uma outra realidade ela implica não só em uma adaptação às condições diferenciadas dessa nova realidade como também representa um momento, uma oportunidade de promover uma inovação incremental na inovação base. Assim, a difusão carrega consigo já um aprofundamento da inovação. Um segundo ponto refere-se `a percepção da inovação por parte dos empresários. "A percepção das oportunidades de investimento é diferenciada entre os empresários. Assim, diferentes avaliações conduzem a tempos distintos para que os demais empresários reconheçam os atributos superiores do novo produto ou novo método de produção" (Hasenclever, 1991:15). Mais ainda, os tipos de inovação são percebidos de forma diferenciada pelos competidores. "Uma inovação de produto, por exemplo, é mais aparente para os demais competidores do que uma inovação de processo que não modifica o produto" (Hasenclever, 1991:16). O mesmo vale para os dirigentes públicos. Estes também deparam-se com a necessidade de reconhecer os atributos da inovação e avaliar se ela se adapta à sua realidade (lembrando que inovações também representam custos). Por outro lado, em um mercado competitivo um tempo muito longo para decisão pode ser fatal representando inércia, conservadorismo, incapacidade de decisão. Quanto ao outro aspecto seria, então, mais fácil absorver uma inovação de produto do que de processos. No nosso paralelo, o produto seria uma nova política pública enquanto o processo estaria constituído mais de mudanças de valores e/ou na organização interna do aparelho de governo que, disposto de outra maneira, poderia gerar novos produtos. Em outras palavras, o produto é mais visível e o processo mais camuflado e portanto de mais difícil percepção.

Ainda um outro aspecto merece ser considerado. Já foi enfatizada a existência de diferenças fundamentais entre a competição dentro do sistema econômico e dentro do sistema político. Se as inovações são absorvidas pelos competidores no sistema econômico aparentemente sem maiores problemas, no sistema político outras variáveis estão em jogo que introduzem algumas dificuldades na decisão de absorver a inovação. A inovação absorvida por um governo de um partido adversário pode representar um atestado público da competência e da qualidade do partido/gestor proponente da inovação, fato a ser explorado por este. Assim, se o absorvedor da inovação tinha por objetivo, como reza a teoria, eliminar, negar os lucros adicionais obtidos pelo inovador, romper com sua posição de vantagem, essa decisão pode resultar em perdas políticas para o imitador. É provável (e passível de investigação acadêmica) que em situações de disputa renhida, uma inovação não seja copiada pelo concorrente justamente para não passar esse atestado de competência do grupo político adversário. Assim, seria de se esperar que o grupo em desvantagem procurasse outra área para inovar, e que, também , a nova inovação não seria copiada pelos adversários.

Em síntese, o objetivo nosso foi mostrar como a inovação torna-se estratégica em um mercado competitivo, seja ele referente ao sistema econômico ou político. Nesse sentido, a teoria schumpeteriana parece prover insights interessantes e importantes para avançar teoricamente na questão da inovação no sistema político.

3- Categorias de Inovação: Uma Proposição

Considerando que o Programa Gestão Pública e Cidadania visa fundamentalmente incentivar experiências inovadoras na gestão pública (com premiação e divulgação de projetos vencedores), fomos buscar, em cada um dos cem projetos inicialmente selecionados (1997), o que eles próprios definiam como inovação. Notamos que a definição de inovação, em alguns projetos, não era clara. Assim, fizemos uma interpretação do material empírico buscando conteúdos de inovação, inclusive onde estes não eram apontados explicitamente.

A partir daí construimos categorias. para expressar inovação na esfera sub-nacional, alertando que essas categorias não esgotam as possibilidades de inovação. Temos inclusive consciência que outras fazem parte desse conjunto. O que acontece aqui é a definição dessas categorias a partir de um certo material empírico também chamamos atenção para o fato de que, por falta de espaço, não podemos nos referir em cada situação ao projeto objeto da inovação.

I- GESTÃO DEMOCRÁTICA: A gestão democrática pode ser vista sob vários ângulos, comportando diferentes definições e qualificações. Consideramos como gestão democrática uma gestão participativa, comunitária, sem paternalismo, com combate ao clientelismo. Essa gestão democrática admite, ela própria, uma escala de gradação. Assim, é possível ter decisões delegadas ao movimento organizado, que significaria gestão hiper-democrática.

A gestão democrática pode ser vista também como a deselitização de políticas públicas, facilitando o acesso de bens normalmente direcionados à uma elite, uma minoria. Ao se contrapor ao paternalismo e autoritarismo tradicionais, a gestão democrática se expressa pela construção de uma nova cultura de relacionamento entre Estado e sociedade civil.

No tocante à superação do paternalismo, este se consubstancia em empréstimos à pequenos e micro-empresários, empréstimos feitos com critérios de mercado ou ainda na implantação de um programa de qualificação de mão-de-obra e colocação desta no mercado perseguindo o objetivo da autonomização dos trabalhadores.

No que se refere à participação, a gestão democrática abarca um universo bastante amplo de experiências pois entendemos que a participação pode se dar em várias esferas: na concepção, no planejamento, nas decisões, na operacionalização. A gestão democrática na sua plenitude seria aquela que contemplasse todas as fases descritas. No caso do material empírico trabalhado, observamos participação em uma ou outra dessas fases, não em todas. Ou seja, em muitos casos a concepção, principalmente, ainda é única e exclusivamente tarefa de "Estado". Mas temos participação nas decisões bem como participação na execução de projetos. A participação pode ser apontada como um expediente democrático ao criar responsabilidade e envolvimento da comunidade, formando assim, uma associação com o Estado para enfrentamento de problemas.

A gestão democrática também se expressa pela consulta à comunidade que seria uma participação indireta ou implícita. Isto quer dizer, os prováveis futuros beneficiários participam as vezes mesmo sem saber que estão participando. Visto de outro ângulo, o Estado toma a decisão ouvindo a comunidade e não decidindo sozinho.

Entendemos assim a gestão democrática como aquela que busca a participação de uma maneira mais ampla mas também localizada. Este seria o caso de uma participação mais operacional, na operação da política. A gestão democrática também se expressa pelo preenchimento de cargos técnicos do Estado através do procedimento de eleições, aumentando portanto o grau de legitimidade e credibilidade dos ocupantes dos cargos. Em outros termos, diminuindo o caráter de indicações políticas para esses cargos expressando um procedimento democrático.

II- DESCENTRALIZAÇÃO E DESBUROCRATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: Esta categoria está umbilicalmente ligada à anterior, havendo até uma certa dificuldade em separá-las. A descentralização tem sido tomada como um movimento no sentido de uma maior democratização. A transferência para níveis sub-nacionais de responsabilidades tradicionalmente localizadas na esfera federal conduziria a um aprofundamento da democracia permitindo uma maior manifestação e participação dos agentes locais nos processos políticos. A questão reveste-se de um caráter polêmico (ver Nunes,1996), mas de qualquer forma a descentralização tem sido implantada no Brasil principalmente pós-Constituição de 1988.

Se esta descentralização tem ocorrido, uma outra, agora na esfera mais local, se soma àquela. Trata-se da descentralização de serviços públicos dentro da esfera sub-nacional. Este movimento aparece um número expressivo de vezes no material empírico analisado. A justificativa da descentralização tem dois aspectos em geral associados: um de entendimento do aprofundamento da democracia, outro de simplificação, descomplexificação e desburocratização da gestão pública.

As experiências encaixadas nessa categoria cobrem um vasto espectro: simplificação de documentos, desburocratização e descomplexificação de concessão de crédito, descentralização de atendimento médico (visitas domiciliares), descentralização da provisão de serviços públicos, descentralização da construção de moradias no sentido dos beneficiários assumirem a contratação interferindo no produto, descentralização do atendimento em questões de acidentes sem vítimas através da implantação dos Juizados Especiais que "seguem os rumos da modernidade de levar os serviços ao encontro do público usuário". A tônica dessas ações baseia-se em levar os serviços aos usuários rompendo com as formas centralizadas tradicionais de gestão pública, visando facilitar a vida dos cidadãos.

III-INCORPORAÇÃO DOS EXCLUÍDOS (MAIORIAS) E MINORIAS: Esta categoria resulta da percepção por parte dos governos sub-nacionais da existência de uma situação de exclusão social, resultado do modelo histórico de desenvolvimento nacional e não apenas efeito de crises contemporâneas, e dos esforços relativamente irrelevantes despendidos tradicionalmente pelo governo federal no sentido de enfrentamento da questão. A exclusão social atinge vastos contingentes da população brasileira e em determinadas situações precede mesmo a condição de cidadania situando-se no plano humanitário, como por exemplo, a questão da fome e da desnutrição.

Esta categoria possui ainda um caráter aparentemente paradoxal: as administrações tanto se voltam para o atendimento das maiorias como de minorias. A questão da exclusão social crescente faz com que mesmo administrações sub-nacionais, principalmente municipais, tenham que enfrentar e buscar soluções para o problema que afeta contingentes populacionais enormes. Por outro lado, percebe-se uma sensibilidade para o atendimento à minorias dos mais variados tipos, que normalmente não eram contemplados pelas administrações locais. Identificamos ainda uma outra característica nas ações governamentais direcionadas a esses grupos. Via de regra, tentam quebrar com a visão assistencialista buscando ações auto-sustentáveis através do trabalho e da geração de emprego e renda.

Cabe observar que em determinadas situações grupos que poderiam ser caracterizados como minorias assumem a condição de maioria. Mais especificamente, em situações de extrema pobreza, em municípios pobres, os grupos "marginalizados" não são exceção, mas a regra. Ou seja, as políticas governamentais voltam-se para a maioria, a exclusão social é a regra e atinge a maioria da população. Por outro lado, existem casos onde os excluídos não são exatamente a maioria mas formam contingentes apreciáveis, como a questão das crianças e adolescentes de rua em situação de risco (vários projetos), bem como de melhorias no abastecimento alimentar aos carentes, além de incorporação de bóia-frias, e através da qualificação da mão-de-obra e da melhoria de condições habitacionais, bem como de crianças em situação de desnutrição crônica. Quanto às minorias, os projetos aqui considerados dirigem-se para vários grupos: catadores de lixo, portadores de deficiência física e mental, prisioneiros. Todos esses projetos visam integrar ou reintegrar minorias à sociedade. De forma geral os projetos pregam a ausência ou superação do paternalismo, procurando direcionar suas ações no sentido da sustentabilidade, mas isto não exclui que alguns projetos assumam sem maiores constrangimentos uma postura paternalista.

Ainda nesta categoria classificamos projetos que se direcionam à incorporação da questão de gênero, mais especificamente, do direito das mulheres nas políticas públicas, explicitando uma opção que normalmente não é contemplada. Ainda foi inserido nesta categoria o projeto de fomento da identidade cultural e auto-estima de crianças negras cuja principal inovação seja ele próprio, ou seja, fazer o resgate de valores culturais que ou sucumbiram ou tendem a sucumbir e que, provavelmente na comunidade considerada (Maranhão) seja uma maioria.

Quanto aos projetos direcionados à minorias (em número expressivo), notamos que talvez o aspecto mais inovador seja o fato do governo assumir esse tipo de serviço. Ou seja, através de uma ação prioritária do poder estatal voltada para o atendimento das maiorias, abre-se espaço para contemplar também minorias, o que certamente resulta de uma sociedade civil mais organizada.

IV. VALORES PARA TRÁS: Poderíamos chamar esta categoria também de "Valores Tradicionais". O uso desta expressão no entanto, não denota nenhum juízo de valor, nem contém nenhum julgamento depreciativo. Preferimos manter este título no sentido de dar ênfase à situação de que, apesar de todo processo de modernização, com o aniquilamento de valores mais tradicionais, parece haver uma recuperação destes em ações desenvolvidas a partir das esferas governamentais. Assim, é como se a sociedade "voltasse para trás" no sentido de recuperar, resgatar valores que um dia já estiveram presentes e que foram abandonados, mas que agora retornam. Esse processo parece Ter sido mais forte nos chamados países periféricos onde não se consolidou uma sociedade civil organizada bem como se tornaram presas fáceis de valores alienígenas.

Verificamos em um número apreciável de projetos uma valorização de conceitos básicos de cidadania tais como: disciplina, senso comunitário, colaboração mútua, zelo com o patrimônio público, respeito à cidade e aos bens públicos, preservação do patrimônio cultural e preservação da memória histórica. Um número considerável de projetos classificados nesta rubrica pertence `a área de saúde possuindo um fio condutor bem nítido, qual seja, um caráter de resgate de valores tradicionais opondo-se a uma visão tecnológica dominante. Podemos dizer que estes projetos fazem uma desapologia da tecnologia, substituída por valores humanos mais universais, tais como, a substituição do calor mecânico da incubadora pelo calor materno, identificação da família como unidade de abordagem no atendimento à saúde, promovendo através do acompanhamento domiciliar de pacientes a humanização destes, bem como a inversão de políticas tradicionais de saúde em direção a políticas preventivas.

V- VALORES PARA FRENTE: Entendemos por "valores para a frente" valores que não existiam até recentemente e que começam a serem cultivados no presente como resultado de uma nova configuração econômica, social e política. São valores da contemporaneidade e que estão presentes não só na gestão sub-nacional mas também na gestão central. Mais ainda, são valores que não são exclusividade do sistema político (do Estado), mas também, e principalmente, da sociedade. Mais especificamente, muitos deles são valores que brotam justamente da sociedade e são encaminhados, e absorvidos, pelo Estado. Muitos deles também ainda não estão completamente assentados, mas a própria ação estatal faz com que ganhem força e expressão para se consolidarem; são novos valores que estão sendo despertados.

Assim, foi possível identificar valores para a frente relativos principalmente à área ecológica: despertar uma consciência ecológica, ambiental, preservação de recursos naturais, saneamento ambiental, controle biológico de pragas, redução de consumo de água (controle de perdas) e energia, reciclagem de papel e entulho, recuperação de áreas degradadas, coleta seletiva de lixo no sentido de evitar o desperdício, troca de lixo reciclável por mudas de árvores, redução da quantidade de resíduos orgânicos sólidos direcionando-os para produção de ração animal e recuperação de matas evitando erosão do solo.

Essas ações até muito recentemente não faziam parte da agenda governamental, mas por pressões da sociedade (grupos ambientalistas, consciência ecológica, preservacionista, etc.), passam a compor essa agenda nos últimos anos. E podemos identificar um número considerável de ações desse tipo. Cabe ainda destacar que muitas dessas ações baseiam-se no envolvimento da comunidade objetivando não só sua sustentação mas também disseminação.

Entendemos também como novos valores, "valores para a frente", ações voltadas para apoio à mulher na terceira idade, visando a quebra de preconceitos e discriminações, a prevenção ao uso de drogas no sentido de preservar a vida, medidas educativas preventivas ao desenvolvimento da cárie em crianças, despertar o hábito da leitura em populações de baixa renda, através do oferecimento gratuito de minibibliotecas particulares para uso da coletividade. Ou seja, novamente são valores que normalmente não fazem parte das agendas governamentais de países periféricos e que por uma série de movimentos da sociedade civil passam a ser introduzidas nas políticas públicas. A importância destes movimentos também pode ser atribuída ao fato de brotarem das esferas sub-nacionais.

Na mesma linha também situam-se programas de conscientização das crianças sobre direitos e deveres do consumidor e sobre o código de defesa do consumidor, conscientização dos problemas de trânsito no sentido de despertar as responsabilidades da cidadania assim como programas de saúde voltados à saúde e não à doença, configurando uma nova concepção de políticas de saúde.

De dentro da própria administração pública também identificam-se mudanças para a frente. Mesmo programas voltados para segmentos de baixa renda passam a ser concebidos e desenvolvidos dentro de padrões de sofisticação que normalmente não só não estavam presentes como eram abominados, algo numa linha de se era um programa para pobres também tinha que ser pobre. Identifica-se também a recorrência ao marketing como estratégia de divulgação das gestões públicas, tendência que certamente deverá se incrementar nos próximos anos. A utilização da informatização para prestação de serviços públicos também foi detectada, tendência que também deve se acentuar no presente e no futuro.

4- Revelações Adicionais do Material Empírico

Antes de mais nada devemos esclarecer que a cidadania não aparece como uma das categorias construídas. Entendemos que por ser o programa chamado "Gestão Pública e Cidadania", esta perpassa todos os projetos, embora nem sempre tenha sido explicitada nesse sentido. Todos as categorias propostas trazem conteúdos associados à cidadania, ou seja, contribuem para a sua instalação, aprofundamento ou resgate.

A análise e avaliação do material empírico considerado ainda nos permite um conjunto de observações que entendemos contributivas à análise da inovação na gestão sub-nacional no Brasil. Em primeiro lugar, a literatura da gestão pública tem destacado muito a questão do empreendedorismo entendido como uma postura governamental mais ativa no sentido de um desenvolvimento mais sustentável e da busca de alternativas de desenvolvimento pelos próprios municípios (ou consórcios municipais), ou seja, iniciativas fora da esfera do governo federal e até mesmo estadual. Em outras palavras, os municípios – determinados municípios – rompem a inércia e buscam eles próprios ações que extrapolam o que normalmente se espera da esfera local. Com isto se amplia a ação dessa esfera no sentido de avançar pela área do desenvolvimento econômico.

No material empírico analisado aparece muito pouco, quase residualmente, essa categoria teórica. Daí a razão de não a considerarmos no conjunto das categorias criadas. Observamos o aparecimento de iniciativas mais na área rural e com alcances limitados, e nem mesmo se explicitando enquanto tal, ou seja, empreendedorismo. Uma razão para isto pode, talvez, ser identificada, no fato de que neste ano (1997), era ano de início de administração municipal e dada a exigência de pelo menos de um ano de existência do projeto não houve tempo hábil para entrada desses projetos. Mesmo assim, projetos que teriam sido mantidos pelas novas administrações e que se encaixariam nessa categoria não apareceram. Esta situação certamente merece maior análise (por exemplo agregando os projetos de 1996 e de 1998) ou, por outro lado, estaria sendo o empreendedorismo super valorizado?

Outra característica que tem sido apontada pela literatura que tem preocupado os analistas em busca de uma gestão pública mais democrática e moderna é a que se refere à questão da accountability. Também, assim como no caso do empreendedorismo, não detectamos a presença de projetos que ressaltem essa busca, com uma única exceção de um projeto que objetiva "descentralizar informações para oferecer maior transparência à gestão e aumentar a capacidade decisória de setores da Secretaria da Fazenda" bem como proporcionar "a queda de guetos de poder, disponibilizando informações para o público interno e externo".

Isso é o que não encontramos. E o que encontramos além das categorias propostas, pode ser assim explicitado. Percebemos uma opção (que talvez seja mais falta de alternativa do que opção) pela implantação de políticas de baixo custo e elevado alcance social. Os projetos ressaltam que é possível obter resultados muito positivos e abrangentes com dispêndios relativamente modestos de recursos, que existem soluções simples para problemas complexos. E essas soluções parecem ser mais viáveis e exeqüíveis justamente porque são tomadas a nível municipal.

Outra percepção nossa quanto ao material analisado prende-se à questão da crise. Apesar da condição de crise que perpassa as últimas décadas, os projetos praticamente não mencionam a existência da crise. Ou a ficha de inscrição (onde nos baseamos para análise dos projetos) não é entendida como locus de explicitação dessa situação ou as administrações já se encontram no momento seguinte ao da crise. Isto quer dizer, há plena consciência desta e o que se faz agora é buscar saídas, soluções.

5- Conclusões: Teoria x Prática

Fim de artigo, hora de voltar à teoria, hora de confrontar o empírico com o teórico. São evidentes as dificuldades quando se toma emprestado um quadro teórico de uma área de conhecimento para aplicar em outra. Como dissemos, este artigo visa contribuir para o avanço do conhecimento em uma área ainda pouco estruturada teoricamente. Esta é uma primeira aproximação deste objeto com o referencial schumpeteriano. O vigor do Programa Gestão Pública e Cidadania atesta que a inovação tem sido uma constante na gestão pública no Brasil nas condições contemporâneas. Em termos de confronto com a teoria, já é possível detectar a partir desse material empírico, que a "competição" se move muito a partir da inovação. A inovação em si já é uma admissão de que determinadas velhas estruturas já não dão mais respostas aos problemas. No caso da gestão pública, ou seja, caso de um sistema social, a inovação torna-se praticamente significado de mudança de postura, de posicionamento ideológico, do que mais precisamente inovação tecnológica. Esta quando ocorre, o faz dentro de um quadro de inovação de conteúdos mais estruturantes.

Da análise de todas as experiências consideradas emerge a percepção que essas são absolutamente necessárias, oportunas, inadiáveis mas não se configuram projetos grandiosos ou megalomaníacos. Constitui-se uma série de ações pontuais mas que introduzem posições e valores de ruptura com a situação histórica do Brasil. Assim, além dos "valores para frente" e "valores para trás", a democracia passa a ser considerada em um número considerável de projetos como um valor a ser perseguido, como um valor universal. E isto, nas condições de autoritarismo perene presentes no Brasil é uma inovação. A luta contra a pobreza, com a incorporação de excluídos, representa o engajamento do nível local no combate a esta situação. A incorporação das minorias representa também uma ampliação do conceito de democracia, normalmente entendido como governo da maioria. Assim, inovação no setor público no Brasil não pode ser vista fora do contexto de miséria, pobreza, marginalidade, exclusão, clientelismo, paternalismo, etc. O que efetivamente rompe com esses valores e condições deve ser visto como inovação.

Ainda a nível empírico pode-se constatar o aparecimento de uma série de inovações numa mesma área de atuação (saúde, meio-ambiente, educação, etc.), o que expressa as proposições teóricas da competição e/ou da difusão. Como limitação deste trabalho e proposta de pesquisa futura ressalta-se a necessidade de identificar as filiações partidárias dos projetos considerados e promover, talvez, a análise de uma inovação em específico para ver a sua evolução a partir da idéia original.

Autores: José Antonio Gomes de Pinho e Mercejane Wanderley Santana

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